É lamentável que em pleno Século XXI e passados mais de 30 (trinta) anos da promulgação e publicação da Lei nº 8.078, de 11.09.1990, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) venha sendo diuturnamente desrespeitado por fornecedores de bens e serviços.
Certamente, se os fornecedores de bens e serviços observassem a boa-fé na formulação dos contratos, fatalmente não teríamos ajuizamento de ações. Mas a tutela judicial é necessária, posto que a tutela estatal, mediante edição de lei, não chega a ser suficiente para coibir tais práticas. Conforme consubstanciado pela Profa. Ada Grinover, na Introdução da obra Código Brasileiro do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto (8ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 8),
Nenhum país do mundo protege seus consumidores apenas com o modelo privado. Todos, de uma forma ou de outra, possuem leis que, em menor ou maior grau, traduzem-se em um regramento pelo Estado daquilo que, conforme preconizado pelos economistas liberais, deveria permanecer na esfera exclusiva de decisão dos sujeitos envolvidos. (…)
Ora, com o devido respeito, a má-fé já se manifesta quando o fornecedor não elucida, de forma clara e inequívoca, o que o seu cliente está efetivamente adquirindo, em absoluta violação ao art. 6º, III, do CDC.
“Ah! Mas em caso de contratos de financiamento ou outros que prevejam correção, não há como prever flutuações do mercado!” – argumentam alguns.
Ora, o que se deve considerar é que, em tese, as políticas governamentais serão guiadas no sentido de salvaguardar as condições de vida de seus administrados, criando condições para a criação e o desenvolvimento de empresas e fomentando o pleno emprego – este, sem dúvida, o melhor “benefício social”. Daí a necessidade de equilíbrio econômico, para que pessoas físicas e jurídicas possam planejar seus investimentos.
Ainda que se constate a presença desse risco, é possível projetar uma evolução de índices de correção ou de taxa de juros para o período do contrato, considerando um percentual médio praticado pelo fornecedor ou pelo mercado em períodos anteriores. Guardadas as devidas proporções, isso é considerado em cálculos contábeis periciais, para se estimar o crescimento futuro da pessoa jurídica, sendo este um dos parâmetros para se aferir o seu valor.
Pode-se certamente indagar: “- Por que o adquirente não observou esses detalhes?” Tal pergunta tem justificativa: “Ou ele adere ao contrato, ou a operação de compra e venda, locação etc. não se efetiva, ocasionalmente agravada pela perda de valores dados a título de sinal”. É pela necessidade de adquirir casa própria – uma das primeiras necessidades humanas – que o indivíduo promove tais contratações por adesão, fenômeno social este bem enfatizado pelo Exmo. Dr. Ricardo Torres Oliveira, em sua fundamentação da sentença proferida nos autos do processo nº 5005708-75.2016.8.13.0024:
Sabido é que o resultado de 09 entre 10 pesquisas que noticiam como maior sonho do brasileiro a consecução de moradia própria para residir. Portanto, se a compra da casa própria está nesta esfera de desejo da grande maioria dos brasileiros, sua frustração excede, e muito, o mero dissabor, configurando, na verdade, verdadeiro sofrimento ante a impotência experimentada pela postergação por parte da ré na entrega do imóvel.
Quanto à boa-fé, se requer vênia para transcrever vetustas lições do Prof. Orlando Gomes (Contratos. 18ª ed. Atual. e notas de Humberto Theodoro Júnior. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 23), mas que continuam atuais, especialmente nesses tempos hodiernos de tanta violação aos direitos do consumidor. Veja-se:
Nos contratos há sempre interesses opostos das partes contratantes, mas sua harmonização constitui o objetivo mesmo da relação jurídica contratual. Assim, HÁ UMA IMPOSIÇÃO ÉTICA QUE DOMINA TODA MATÉRIA CONTRATUAL, VEDANDO O EMPREGO DA ASTÚCIA E DA DESLEALDADE E IMPONDO A OBSERVÂNCIA DA BOA-FÉ E DA LEALDADE, tanto na manifestação da vontade (criação do negócio jurídico) como, principalmente, na interpretação e execução do contrato.
Nesse sentido, Carlos Roberto Gonçalves (Direito Civil Brasileiro: Contratos e Atos Unilaterais. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 56), assevera que
(…) a boa-fé é tanto forma de conduta (subjetiva ou psicológica) como norma de comportamento (objetiva). Nesta última acepção, está fundada na honestidade, na retidão, na lealdade e na consideração para com os interesses do outro contraente, ESPECIALMENTE NO SENTIDO DE NÃO LHE SONEGAR INFORMAÇÕES RELEVANTES A RESPEITO DO OBJETO E CONTEÚDO DO NEGÓCIO.
Por fim, colacionamos as palavras de Flávio Tartuce (Manual de Direito Civil: volume único I. 6ª ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2016, pag. 625), que descortinando a boa-fé como
(…) exigência de conduta leal dos contratantes, está relacionada com os deveres anexos ou laterais da conduta, que são ínsitos a qualquer negócio jurídico, não havendo sequer a necessidade de previsão no instrumento negocial. São considerados deveres anexos, entre outros: DEVER DE CUIDADO EM RELAÇÃO À OUTRA PARTE NEGOCIAL; DEVER DE RESPEITO; DEVER DE INFORMAR A OUTRA PARTE SOBRE O CONTEÚDO DO NEGÓCIO; DEVER DE AGIR CONFORME A CONFIANÇA DEPOSITADA; DEVER DE LEALDADE E PROBIDADE; DEVER DE AGIR COM HONESTIDADE (…).
Por uma questão de justiça, deve-se por fim destacar que o Poder Judiciário, na pessoa de seus digníssimos e laboriosos juízes, constitui a última e mais eficiente barreira a abusos de toda ordem.
Porém, eventos tais como o da Pandemia de Covid-19, até então permaneciam no âmbito dos filmes de ficção científica, pois, ante a evolução da Medicina, o homem comum não poderia conceber que em peno Século XXI seríamos atingidos por essa desumana hecatombe.
Justifica-se então a adoção da Teoria da Imprevisão, existente no ordenamento jurídico pátrio e de outros países. E é justamente com base nessa Teoria que o Poder Judiciário tem afastado a utilização de índices de atualização, que sofreram impacto artificial por conta da Pandemia. Veja-se o dispõe o Código Civil:
Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
O IGPM não raras vezes atinge patamares superiores quando comparados ao INPC ou a outros índices oficiais de inflação. Todavia, aquele foi significativamente impactado, nos exercícios de 2020 em diante, por força da Covid-19. Se analisada a sua evolução histórica (anexo, índices mensais de janeiro de 2011 a fevereiro de 2022), verifica-se que o IGPM acumulou em 2020 23,14% e em 2021 17,78%. Somente de agosto de 2020 a agosto de 2021, o aumento acumulado do referido índice atingiu a casa de 31,12%. Trata-se de uma alta elevada e inesperada, que quebra o equilíbrio econômico de um contrato. Veja-se o impacto no período da Pandemia:
Quadro resumo indicadores – Janeiro/2020 a Outubro/2022
IGPM | INPC | IPCA |
53,13% | 21,74% | 20,44% |
As diferenças são absolutamente gritantes, justificando o pedido de afastamento do IGPM e sua substituição pelo IPCA, o que vem sendo acolhido pela jurisprudência:
APELAÇÃO. COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. PRETENSÃO DE SUBSTITUIÇÃO DO ÍNDICE DE CORREÇÃO DA PRESTAÇÃO DO IGPM PELO IPCA, EM RAZÃO DOS EFEITOS PROPAGADOS PELA PANDEMIA DA COVID-19. ACOLHIMENTO DA IMPUGNAÇÃO A GRATUIDADE. AUTOR QUE NÃO PODE SER CONSIDERADO POBRE. DOCUMENTOS JUNTADOS NA INICIAL INFIRMADOS POR OUTROS ELEMENTOS CONSTANTES NOS AUTOS. ALTERAÇÃO OBJETIVA DA BASE DO CONTRATO. POSSIBILIDADE DE INTERVENÇÃO JUDICIAL PARA RECOMPOR O EQUILÍBRIO FINANCEIRO DO CONTRATO E O SINALAGMA DAS PRESTAÇÕES, CONFORME ASSEGURADO PELO ART. 6º, V, DO CDC E ART. 317, DO CC, PARA A PRESERVAÇÃO DO NEGÓCIO. EVENTO SUPERVENIENTE, INEVITÁVEL E IMPREVISÍVEL. ELEVAÇÃO EXCESSIVA DA PRESTAÇÃO. POSSIBILIDADE DE SUBSTITUIÇÃO DO IGPM PELO IPCA, COMO ÍNDICE DE CORREÇÃO MONETÁRIA DAS PRESTAÇÕES MENSAIS DO CONTRATO DE COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA. POSSIBILIDADE DE REAJUSTES MENSAIS, TAL COMO PACTUADO, NA FORMA DA LEI Nº 10.931/04. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.
(TJSP; Apelação Cível 1005531-26.2021.8.26.0451; Relator (a): Edgard Rosa; Órgão Julgador: 22ª Câmara de Direito Privado; Foro de Piracicaba – 4ª Vara Cível; Data do Julgamento: 10/02/2022; Data de Registro: 10/02/2022)
AGRAVO DE INSTRUMENTO – LOCAÇÃO DE IMÓVEL – AÇÃO DE REVISÃO DE CONTRATO DE LOCAÇÃO COMERCIAL – TUTELA DE URGÊNCIA – Concessão parcial – Presença dos requisitos autorizadores – Verossimilhança – Pandemia – Caso fortuito e força maior – Substituição provisória do índice de reajuste IGP-M pelo IPCA – Possibilidade – Índice contratado que não condiz com a situação econômica atual – Pedido de suspensão da exigibilidade do 13º aluguel – Impossibilidade – Ato negocial entre as partes – Recurso parcialmente provido
(TJSP. Agravo de Instrumento nº 2056744-49.2021.8.26.000. 35ª Câmara de Direito Privado. Rel. Des. Melo Bueno. Data do Julgamento: 17 de maio de 2021).
APELAÇÃO – AÇÃO REVISIONAL DE ALUGUEL – RECURSO DA AUTORA – LOCAÇÃO COMERCIAL – REVISÃODOALUGUEL-FLEXIBILIZAÇÃODAEXIGÊNCIA DE TRÊS ANOS PARA PROPOSITURA DAAÇÃO – PANDEMIA – TEORIA DA IMPREVISÃO – DESCABIMENTO- PROVASDEMONSTRANDOA RECUPERAÇÃO DA EMPRESA – SUBSTITUIÇÃO DO IGP-M – CABIMENTO – ÍNDICE DESPROPORCIONAL NACONJUNTURA ATUAL1 – Deve ser flexibilizado o requisito de três anos de contrato exigido para a propositura da ação revisional de aluguel (Lei n. 8.245/91, art. 19), considerando o contexto extraordinário de pandemia.2 – O pedido de redução de aluguel não é mera consequência lógica da pandemia, dependendo de prova da asfixia financeira e da alteração do sinalagma contratual genético (CC, art. 317).Provas demonstrando a capacidade da empresa, que já ostenta faturamento próximo ao do período pré-crise.3 – Abusividade conjuntural do índice IGP-M como reajuste de contratos locativos, uma vez que seus fatores econômicos se mostram totalmente dissociados do escopo de mera recomposição do poder aquisitivo, alcançando feição próxima da especulação cambial. Substituição para o IPCA, índice mais adequado racionalmente aos propósitos do reajuste. Precedente. RECURSO DA AUTORA PARCIALMENTE PROVIDO.
(TJSP. Apelação nº 1023541-07.2020.8.26.0564. 30ª Câmara de Direito Privado. Rel. Des. Maria Lúcia Pizzotti. Data do Julgamento: 26 de maio de 2021).
AGRAVO REGIMENTAL Interposição contra decisão monocrática da Relatora que deu provimento parcial ao agravo de instrumento Razoabilidade Ação de revisão de contrato de locação de imóvel comercial Tutela de urgência Presença dos requisitos autorizadores Verossimilhança Pandemia Caso fortuito e força maior Substituição provisória do índice de reajuste IGP-M pelo IPCA Cabimento Índice contratado que não condiz com a situação econômica atual Possibilidade de concessão da tutela de urgência condicionada à prestação de caução, consoante prevê o § 1º do art. 300 do CPC Decisão mantida Regimental não provido.
(TJSP. Agravo Regimental nº 2111801-52.2021.8.26.0000/5000. 34ª Câmara de Direito Privado. Rel. Des. Lígia Araújo Bisogni. Data do Julgamento 23 de agosto de 2021).
Deve-se destacar que para alguns julgadores, tampouco seria necessário invocar a Teoria da Imprevisão como supedâneo para alteração de cláusula contratual. Veja-se excerto do voto do Relator, Des. Dr. Cézar Zalaf, nos autos da Apelação Cível nº 1001711-51.2022.8.26.0390 -Voto nº 5726, TJSP:
Destaco, ainda, que, por se tratar de relação consumerista e, nos termos do artigo 6º, V, do CDC, sequer seria necessária a presença de evento imprevisível e/ou extraordinário, já que a Teoria da Base Objetiva do Contrato aplicável nestes casos exige apenas e tão somente a ocorrência de fato superveniente que tornem as prestações excessivamente onerosas.
Sob tal teoria, a revisão contratual ocorre por simples 15 onerosidade excessiva, decorrente de fato superveniente que tenha o condão de alterar de maneira objetiva as bases nas quais as partes firmaram negócio jurídico. Há interferência na relação de equivalência entre prestação e contraprestação.
(…).
Diante de tais motivos, merece ser reformada a sentença para julgar parcialmente procedentes os pedidos formulados na inicial para de que seja alterado o índice de correção para o IPCA-E, desde março de 2020, momento em que foi decretada a pandemia da COVID-19, até fevereiro de 2022, permitindo-se que seja feita a compensação de valores já pagos, e devidos desde então, tudo a ser apurado em liquidação de sentença, bem como para condenar a ré no pagamento das custas, despesas processuais e honorários advocatícios de 12% 19 sobre o valor da condenação.
Diante do exposto, afigura-se então legítimo eventual pleito de revisão de contrato com afastamento de cláusula contratual que venha a causar desequilíbrio na relação anteriormente firmada, devendo ser avaliada a situação do interessado, preferencialmente com a demonstração contábil-financeira dos impactos da adoção do IGPM quanto à atualização e cálculo de parcelas de financiamento ou do contrato de aluguel, conforme o caso.
Caso você, caro leitor, veja-se às voltas om problemas dessa natureza, contate-nos e poderemos orientá-lo em conformidade com as exigências da ação.
AMAURY RAUSCH MAINENTI é contador e advogado tributarista, atuando ainda como auditor e perito judicial contábil desde 1986. É professor de Direito Tributário, Auditoria e Perícia Contábil em diversas instituições de ensino superior. Foi auditor de tributos municipais.
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AMAURY BAETA MAINENTI é advogado, graduado pela PUCMG e pós graduando em Direito Civil e Processual Civil.
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