O IPVA PODE SER EXTINTO?

Amaury RauschMainenti

Contador e Advogado graduado pela PUC-MG – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, com mais de 30 anos de experiência profissional em Direito Tributário, Auditoria e Perícia Contábil. Mestrando em Administração pelo Centro Universitário UNA, linha de pesquisa “Impactos da Tributação nas Empresas”. Master of Business Administration (MBA) em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas. Especializado em Direito do Agronegócio pela Universidade de Araraquara/SP. Especializado em Direito Público pela Fundação Escola Superior do Ministério Público de Minas Gerais. Especializado em Matemática Financeira pelo Instituto Brasileiro de Capacitação Bancária. Auditor Interno da Qualidade certificado pela Griffo Enterprise. Exerce a advocacia (empresarial e tributária) e a perícia judicial, atuando junto a diversas comarcas do Estado de Minas Gerais, particularmente em ações de natureza tributária e empresarial. Desenvolve atividade letiva, ministrando aulas de Direito Tributário, Auditoria e Perícia Contábil em cursos de Graduação e Pós Graduação em diversas instituições de ensino superior. Possui diversos artigos publicados em jornais, livros e revistas especializadas.rauschmainenti@gmail.com

Resumo: O IPVA pode ser extinto? O presente artigo tenta responder a esta pergunta.

The IPVA can beextint? The presentearticle tries to answer this question.

Palavras-chave: Tributação – Imposto – IPVA – Extinção – Lei.

Key-words: Tributacion – Tax – IPVA – Extincion – Law.

  1. Primeiras palavras

Paira no ar, de forma mais acentuada, uma insatisfação popular quanto ao pagamento do IPVA – Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores. Muitos entendem que tal tributo – voltado para a manutenção da malha rodoviária, segundo o senso comum – não poderia subsistir, em face do pagamento do pedágio.

Outros adeptos ao não pagamento do IPVA arvoram-se no fato de que o tributo incide sobre um bem de consumo, já excessivamente tributado pelo Imposto de Importação (II), Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), as contribuições PIS e COFINS, todos eles federais, além do Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias, Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS), de competência estadual. Isso sem falar no Imposto de Renda (IR) e na Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), que compõem o preço final dos veículos. Afinal, na prática, todo tributo repercute para o consumidor final.

Portanto, indaga-se se estariam os defensores das ideias aqui apontadas destituídos de razão. Mas, antes de se responder a tal indagação, far-se-á um breve escorço histórico acerca da evolução da tributação no Brasil, buscando com isso identificar o marco inicial da tributação sobre veículos automotores.

  • O período monárquico: a Constituição Imperial de 1824

A Constituição de 1824 não contemplou um capítulo ou sequer um único artigo que tratasse do sistema tributário. É até compreensível que assim procedesse o primeiro Imperador do Brasil (como ele próprio se autoproclamara: “Art. 4. A Dynastia imperante é a do Senhor Dom Pedro I, actual Imperador, e Defensor Perpetuo do Brazil”), vez que todo o território brasileiro era nada mais, nada menos do que uma “extensão do quintal” da Família Real, de onde estava arrancava tudo o que lhe bastasse à sobrevivência.

Assertiva semelhante encontra-se em Baleeiro(2001: 141):

Nas fases dominial e regalista, muito embora o governo se mantivesse, de modo geral, com os frutos do patrimônio que, naqueles tempos, não se distinguia da fortuna pessoal do príncipe, eram poucas as empresas públicas. Geralmente aquele patrimônio oferecia caráter imobiliário, constituído pelas terras, minas, salinas, florestas etc., a cujos proventos o soberano juntava os auferidos pelos direitos regalianos (cunhagem de moeda, fornos e moinhos banais, pedágios, dízimos do pescado, estanco do pau-brasil, inúmeros e pitorescos privilégios feudais etc.).

O Brasil ainda não havia sido dividido em Estados, assumindo a forma federativa, o que somente veio a se consumar com a Constituição Republicana de 1891. Foi a partir dela que o Estado brasileiro assumiu a feição atual, vez que foram transformadas as antigas províncias em Estados, nos moldes da organização político-administrativa norte-americana. É o que se observa nos seguintes artigos:

TITULO 1º

DO IMPERIO DO BRAZIL, SEU TERRITORIO, GOVERNO, DYNASTIA, E RELIGIÃO.

Art. 1. O IMPERIO do Brasil é a associação Política de todos os Cidadãos Brazileiros. Elles formam uma Nação livre, e independente, que não admitte com qualquer outra laço algum de união, ou federação, que se opponha à sua Independência.

Art. 2. O seu território é dividido em Provincias na fórma em que actualmente se acha, as quaes poderão ser subdivididas, como pedir o bem do Estado.

Apesar de não se conceber um sistema tributário que contemplasse as espécies tributárias, cuidou-se, todavia,da Fazenda Nacional. Além disso, a Constituição informa que nos orçamentos gerais constarão as despesas e as previsões de contribuições, como se constata nos seguintes artigos:

TÍTULO 7º

DA ADMINISTRAÇÃO E ECONOMIA DAS PROVÍNCIAS

CAPÍTULO III

DA FAZENDA NACIONAL

Art. 170. A Receita, e despeza da Fazenda Nacional será encarregada a um Tribunal, debaixo do nome de “Thesouro Nacional” aonde em diversas estações, devidamente estabelecidas por Lei, se regulará a sua administração, arrecadação e contabilidade, em recíproca correspondencia com as Thesourarias, e Autoridades das Provincias do Império.

Art. 171. Todas as contribuições directas, á excepçãodaquellas, que estiverem applicadas aos juros, e amortisação da Divida Publica, serão annualmente estabelecidas pela Assembléa Geral, mas continuarão, até que se publique a sua derogação, ou sejam substituídas por outras.

Art. 172. O Ministro de Estado da Fazenda, havendo recebido dos outros Ministros os orçamentos relativos às despezas das suas Repartições, apresentará na Câmara dos Deputados annualmente, logo que esta estiver reunida, um Balanço geral da receita e despeza do Thesouro Nacional do anno antecedente, e igualmente o orçamento geral de todas as despezas publicas do anno futuro, e da importancia de todas as contribuições, e rendas publicas.

Pela leitura dos dispositivos constitucionais, ainda que estejam sobremaneira distantes da nossa realidade, facilmente constata-se que não houve maior cuidado no trato com a matéria tributária, nos moldes como esta foi constitucionalmente concebida no Brasil, posteriormente.

Tratam, tais artigos, de matéria vinculada ao Direito Financeiro, concernentes, pois à fixação da despesa e à estimativa da receita, em um período trienal (ano anterior, ano de fixação e ano de projeção, metodologia esta não abandonada pela ainda vigente Lei nº 4.320, de 17.03.1964, que estatui normas gerais de Direito Financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios), e não especificamente de Direito Tributário, aludindo, neste aspecto, apenas às contribuições e rendas públicas.

Baleeiro (2001: 142-143), ao tratar da Receita Pública, menciona que

No período colonial, os primeiros fatos financeiros do Brasil nascente foram de natureza patrimonial e regaliana. O descobridor toma posse histórica da terra para el-rei de Portugal, em cuja coroa se integra, destarte, todo o imenso patrimônio, que se desmembraria lentamente através das capitanias e pelas sesmarias e datas, algumas por parte dos donatários, outras pelos governadores gerais.

Mas donatários e sesmeiros ficavam adstritos às obrigações de caráter fiscal para com a Coroa: o quinto dos metais preciosos, o Dízimo a Deus, o dízimo do pescado etc. As cartas forais são explícitas a respeito. E deviam colonizar e explorar efetivamente as terras.[1]

Conclui-seque, face à extrema jovialidade da Constituição Imperial, ainda não atingida pelos ideais republicanos e pelo Federalismo, e à relativa relevância que a matéria tributária possuía àquela época (principalmente quando comparada aos dias atuais), não atingindo foros de constitucionalização, não preocupou-se o legislador constituinte em cuidar, com maior riqueza de detalhes, do que seriam as citadas “contribuições”.

Por outro lado, a falta de menção expressa aos tributos e suas espécies no texto constitucional de então não é indicativo de sua inexistência. Baleeiro já nos informou que nos primeiros anos contados a partir da declaração de Independência, o Império Brasileiro viveu sob os auspícios da legislação portuguesa (as Ordenações Filipinas), que contemplavam impostos, verbi gratia, que seriam o embrião do atual tributo sobre o consumo (as conhecidas sisas). Somente com o advento da Lei nº 99, de 31.10.1835, é que a matéria tributária veio a ser disciplinada, separando as receitas de competência do Império daquelas de competência das províncias (BALEEIRO, 2001: 295).

Na verdade, o “Constituinte” Imperial, dada a própria estrutura unitária do Estado brasileiro, e já antevendo a necessidade de manter os cofres do “Thesouro Nacional” sempre munido de recursos, optou por transferir à legislação infraconstitucional a definição dos tributos e suas espécies, particularmente porque sua alteração exigiria menor rigor[2]. Tanto assim é que a própria Constituição define aquilo que é ou não matéria constitucional, estabelecendo limites precisos para sua definição:

TÍTULO 8º

DAS DISPOSIÇÕES GERAES E GARANTIAS DOS DIREITOS CIVIS E POLITICOS DOS CIDADÃOS BRAZILEIROS

Art. 179. É só Constitucional o que diz respeito aos limites, e attribuições respectivas dos Poderes Políticos, e aos Direitos Politicos, e individuaes dos Cidadãos. Tudo, o que não é Constitucional, póde ser alterado sem as formalidades referidas, pelas Legislaturas ordinárias.

Por outro lado, cabia à Câmara dos Deputados a iniciativa — PRIVATIVA, destaca-se — sobre impostos (art. 36, inciso I).

Oportunamente, destaca-se que em 1824 ainda não existiam impostos sobre veículos automotores, até mesmo porque estes só vieram a ter a sua existência com a criação do motor à explosão, nos idos de 1864, como se verá, à frente.

O fim da Monarquia, com sua substituição pela República e posterior outorga de uma nova Constituição, veio dar peculiar feição à estrutura do sistema tributário que vigoraria na infante República brasileira.

  • A República: a Constituição de 1891

A Constituição de 1891tem caráter eminentemente positivista, haja vista a influência exercida, em sua elaboração, pelas ideias do filósofo francês Auguste Comte.

Não cabe aqui analisar detidamente quais os fatores que contribuíram para a derrocada da monarquia brasileira. Mas é importante salientar que alguns fatores exerceram profunda influência, tais como o caráter eminentemente abolicionista de D. Pedro II e da Princesa Isabel, além da possibilidade de vir a ser esta a Imperatriz do Brasil, bem como o advento das ideias republicanas e federalistas na América do Norte. E, findo um regime e iniciando-se outro, surgiu daí a necessidade de se elaborar outra Constituição.

Os constituintes de 1891, seguindo o modelo federalista norte-americano, transformaram as antigas províncias em Estados (art. 2º.), competindo a estes a incumbência de prover, “a expensas próprias, ás necessidades de seu governo e administração” (art. 5º.). E, para prover as necessidades de seus governos, os Estados deveriam contar com receitas próprias. Assim, foram-lhes constitucionalmente conferidos a competência exclusiva de decretação dos seguintes impostos:

TITULO I

DA ORGANISAÇÃO FEDERAL

Disposições Preliminares

Art. 9º. É da competencia exclusiva dos Estados decretar impostos:

1º Sobre a exportação de mercadorias de sua propriaproducção;

2º Sobre immoveisruraes e urbanos;

3º Sobre transmissão de propriedade;

4º Sobre industrias e profissões.

§ 1º Tambem compete exclusivamente aos Estados decretar:

1º Taxa de sello quanto aos actos emanados de seus respectivos governos e negócios de sua economia;

2º Contribuições concernentes aos seus telegraphos e correios.

Nesta Constituição foi delineada a estrutura tributária básica, cujas espécies tributárias constituíram a gênese dos atuais impostos sobre a importação e exportação, sobre a transmissão da propriedade de bens (inter vivos, causa mortis e doação), sobre a propriedade territorial rural e urbana, sobre produtos industrializados e serviços. Pela primeira vez, foram tais impostos contemplados em um dispositivo constitucional, vindo, a partir daí, a sofrer diversas alterações, de conformidade com os interesses desse ou daquele grupo dominante, como se verá ao analisar as demais Constituições brasileiras.

Havia, no entanto, proibição específica para os Estados:

TITULO I

DA ORGANISAÇÃO FEDERAL

Disposições Preliminares

Art. 11. É vedado aos Estados, como á União:

1º Crear impostos de transito pelo territorio de um Estado, ou na passagem de um para outro, sobre productos de outros Estados da Republica, ou estrangeiros, e bem assim sobre os vehiculos, de terra e agua, que os transportarem;

Por outro lado, os Estados poderiam criar outras espécies tributárias, desde que não se enquadrassem em impostos de competência exclusiva da União (e vice-versa), previstos no art. 7º, e que não onerasse as operações de trânsito de produtos. E, pelo visto, a Constituição de 1891 não proibia a bitributação, como expressamente prescrevia o art. 12: “Além das fontes de receita discriminadas nos arts. 7º, 9º, é licito á União, como aos Estados, cumulativamente ou não, crear outras quaesquer, não contravindo o disposto nos arts. 7º, 9º e 11, n. 1.”

Repetindo o mandamento contido no inciso I do art. 36 da Constituição de 1834, o art. 29 da Constituição de 1891 manteve como competência da Câmara dos Deputados a iniciativa de todas as leis referentes a impostos.

Constata-se, pois, que na Constituição de 1891 se inicia o “hábito” de se constitucionalizar a tributação, que iria se repetir nas demais constituições brasileiras.

Particularmente no tocante a veículos automotores, ainda que em 1891 já existissem veículos com motores à explosão[3], estes ainda não eram objeto da sanha arrecadatória dos governantes.

  • A Constituição de 1934

Quarenta e três anos depois e atendendo aos anseios populares, surge no cenário brasileiro uma nova Constituição: a intitulada Constituição Social.

Cunha (2001: 87) menciona que

A Constituição de 1934 revela um texto extensivo que procurou expressar os movimentos político-sociais de então. Embora tivesse mantido o regime presidencialista, inovou com a introdução de um Estado Social (atendendo aos reclamos do momento histórico da sociedade).

Ainda que extensa, a nova Constituição, da mesma forma que as anteriores, não contemplou um capítulo especificamente voltado ao sistema tributário. Porém, inovou em alguns aspectos, dentro desta temática. Enquanto que as Constituições anteriores conferiam à Câmara dos Deputados a iniciativa das leis concernentes aos impostos, a Constituição de 1934 estendeu tal competência ao Presidente da República. Caracteriza-se, a nosso ver, em importantíssima inovação em matéria tributária. Tanto assim é que esta disposição constitucional perpetuou-se nas demais Constituições brasileiras até os nossos dias: “Art. 41. (…) § 1º. Compete exclusivamente á Camara dos Deputados e ao Presidente da Republica a iniciativa das leis de fixação das forças armadas, e, em geral, de todas as leis sobre materia fiscal e financeira.”

É interessante anotar como a análise comparada das Constituições faculta um adequado conhecimento de uma determinada matéria. Particularmente no concernente ao objeto ao qual se volta a nossa atenção, não há como buscar o surgimento do imposto sobre veículos sem que se efetue este brevíssimo estudo constitucional. E, como demonstrado no dispositivo constitucional retro, uma vez que a iniciativa de leis sobre impostos passou a ser também do Presidente da República, poderia este muito bem ter instituído a cobrança daquela espécie de exação, atendendo à própria competência residual, prevista no inciso VII do art. 10 daquela Constituição, que atribuía tanto à União quanto aos Estados a possibilidade de “crear outros impostos, além dos que lhes são attribuidosprivativamente.”!

Dentro do campo especificamente voltado à instituição de tributos, coube aos Estados decretar impostos sobre:

TITULO I

DA ORGANIZAÇÃO FEDERAL

CAPÍTULO I

DISPOSIÇÕES PRELIMINARES

Art. 8º. Tambem compete privativamente aos Estados:

I, decretar impostos sobre:

a- propriedade territorial, excepto a urbana;

b- transmissão de propriedade causa mortis;

c- transmissão de propriedade immobiliariainter vivos, inclusive a sua incorporação ao capital da sociedade;

d- consumo de combustiveis de motor de explosão;

e- vendas e consignações effectuadas por commerciantes e productores, inclusive os industriaes, ficando isenta a primeira operação do pequeno productor, como tal definido na lei estadual;

f- exportação das mercadorias de sua producção até o maximo de dez por cento ad valorem, vedados quaesqueraddicionaes;

g- industrias e profissões;

h- actos emanados do seu governo e negocios da sua economia, ou regulados por lei estadual.

Havia um amplo espectro de fatos econômicos reservados para os Estados, muitos deles hoje encerrados sob o ICMS. Lado outro, vê-se que não há menção expressa à forma como os veículos automotores eram tratados pelo fisco, exceto os combustíveis de motor à explosão (art.6º, I, b, CF/1934).

O imposto de competência estadual visava onerar tanto o consumo de combustíveis de motor à explosão, quanto as vendas e as consignações, ou seja, tudo aquilo que foi efetivamente vendido ou as operações de remessa de mercadorias de propriedade de um comerciante para serem vendidas por outro comerciante, operação esta conhecida comumente como consignação.

Mas, a par dessas digressões, observa-se que ainda aqui não havia a tributação sobre a propriedade de veículos automotores, ainda que estes já se constituíssem em bens de consumo, existentes à época da Carta Magna em análise. Optava, portanto, o legislador em tributar o consumo dos combustíveis que alimentavam os motores à explosão dos veículos automotores, ao invés de tributar a propriedade destes.

Essa ordem de coisas ainda prevaleceu por um período de tempo significativo, até quando tiveram a in(feliz) ideia de tributar a propriedade desses bens consumíveis, como se verá oportunamente.

  • Era Vargas: A Constituição de 1937

A Constituição “outorgada” por Getúlio Vargas em 11 de novembro de 1937 concentrou amplos poderes em suas mãos, mais precisamente o de editar leis.

Ainda que seu art. 1º. mencionasse que o “poder político emana do povo e é exercido em nome dele, e no interesse do seu bem estar, da sua honra, da sua independência e da sua prosperidade”, a concentração da iniciativa das leis nas mãos de Getúlio Vargas, cabendo à Câmara dos Deputados apenas a sua discussão, já demonstra que o povo esteve completamente alijado da vida política brasileira.

Um ponto que merece destaque, pois se vincula ao princípio da legalidade, sustentáculo de qualquer sistema tributário, foi o golpe desfechado pelo ditador justamente no processo legislativo.

Instaurou o Parlamento Nacional, composto pela Câmara dos Deputados e pelo Conselho Federal (este, substituindo o Senado, art. 38, § 1º). Concomitantemente, instituiu uma espécie de “assessoria” àqueles órgãos legislativos:

DO PODER LEGISLATIVO

Art. 38. O Poder Legislativo é exercido pelo Parlamento Nacional, com a colaboração do Conselho da Economia Nacional e do Presidente da República, daquele mediante parecer nas matérias da sua competência consultiva e deste pela iniciativa e sanção dos projetos de lei e promulgação dos decretos-lei autorizados nesta Constituição.

Se os deputados e senadores, sob o pálio da Constituição anterior, eram eleitos de forma direta (aqueles, representando o povo; estes, os Estados), com a nova Constituição o sufrágio passou a ser indireto, ou seja:

  1. o povo escolhia os representantes para a Câmara de Vereadores, e estes escolhiam aqueles que iriam representá-los na Câmara dos Deputados (arts. 46 e 47);
  2. as vagas para o Conselho Federal eram preenchidas pelos representantes dos Estados (um por Estado), escolhidos pelas Assembleias e aprovados pelo Governador, além de 10 (dez) vagas preenchidas por Conselheiros escolhidos pelo Presidente (art. 50, caput, e § único).

Outrossim, a Constituição previa, em seu art. 51, como exigência ao preenchimento das vagas de representantes dos Estados, além dos requisitos de maioridade e de nacionalidade, o exercício, por espaço nunca inferior a quatro anos, de cargo de governo na União ou nos Estados (art. 51).

Ou seja, o ditador quis preservar todas as condições para se instaurar e fundamentar o seu regime, retirando dos órgãos legislativos o poder que tradicionalmente lhes foi conferido desde o advento do Espírito das Leis, de Montesquieu, transformando-os em meros órgãos apreciadores das leis iniciadas pelo Executivo:

DAS LEIS E DAS RESOLUÇÕES

Art. 64. A iniciativa dos projetos de lei cabe, em princípio, ao Governo. Em todo caso, não serão admitidos como objeto de deliberação projetos ou emendas de iniciativa de qualquer das Câmaras, desde que versem sobre matéria tributária ou que de uns ou de outras resulte aumento de despesa.

É claro que poderia haver a rejeição do projeto de lei do Executivo, haja vista o disposto no § único do art. 65. Entretanto, possuindo o Presidente 10 (dez) representantes no Conselho Federal, bastaria a ele iniciar o processo legislativo por aquela Câmara, concluindo-o na Câmara dos Deputados. 

Estes, por sua vez, viviam sob a ameaça de dissolução, vez que foi conferido ao Presidente tal prerrogativa, em defesa do Estado (“Art. 75. São prerrogativas do Presidente da República:(…)b) dissolver a Câmara dos Deputados no caso do parágrafo único do art. 167”).

Sua leitura tem que ser feita combinada com o artigo 167:

DA DEFESA DO ESTADO

(…)

Art. 167. Cessados os motivos que determinaram a declaração de estado de emergência ou do estado de guerra, comunicará o Presidente da República à Câmara dos Deputados as medidas tomadas durante o período de vigência de um ou de outro.

Parágrafo único. A Câmara dos Deputados, se não aprovar as medidas, promoverá a responsabilidade do Presidente da República, ficando a este salvo o direito de apelar da deliberação da Câmara para o pronunciamento, do pais mediante a dissolução da mesma e a realização de novas eleições.

Ora, o país vivia sob a égide de inúmeras ameaças; umas reais, outras fantasiosas. A própria mensagem de abertura da Carta Constitucional de 1937 já os mencionava: propaganda demagógica; desordem generalizada, dissídios partidários; lutas de classes, infiltração comunista.

Não havia espaço para um adequado jogo político de elaboração e aprovação das leis.Por outro lado, ainda que lhes tenha sido assegurado o “direito” de apreciar as leis, Vargas instituiu o tão decantado decreto-lei, não se aplicando, em sua gênese, em matéria tributária concernente a impostos (art. 13, d).

Apesar desses escolhos, a Constituição “Polaca”, da mesma forma que as anteriores, também não inovou em matéria tributária. Reproduziu praticamente o texto da Carta anterior, no tocante às competências tributárias, mantendo na esfera federal a tributação dos consumos de quaisquer mercadorias (art. 20, I, b), mas excluindo o imposto sobre consumo de combustíveis, na esfera estadual.

Salvo no artigo que trata da bitributação, o novo texto excluiu, de imediato, a competência dos Estados em benefício da União, em se tratando de impostos incidentes sobre um mesmo fato gerador: “Art. 24. Os Estados poderão crear outros impostos. É vedada, entretanto, a bitributação, prevalecendo o imposto decretado pela União, quando a competencia for concorrente.(…)”.

O art. 11 da Carta de 1934 conferia ao Senado Federal a competência de declarar a existência da bitributação e determinar a qual dos dois tributos caberia a prevalência. Com a redação da Carta Constitucional de 1937, o imposto da União automaticamente prevaleceria, em detrimento ao estadual, e a bitributação seria declarada pelo Conselho Federal (que, como já mencionado, substituiu o Senado Federal).

Com a Constituição de 1937, desaparece o fato econômico tributável “consumo de combustíveis de motor à explosão”, inexistindo ainda a propriedade de veículos automotores como fato econômico tributável. Apesar da ausência de menção expressa, é possível deduzir que aquele passa a ser tratado como mera mercadoria, atraindo a incidência do tributo federal.

  • A Constituição de 1946

A Constituição de 1946 manteve praticamente as mesmas disposições da Constituição de 1937, nos artigos concernentes aos impostos de competência estadual.

Oportunamente, vale destacar que a Emenda Constitucional nº. 5, de 21.11.1961, transferiu para os Municípios a competência para instituição do Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbana e Rural (inciso I do antigo art. 19) e do Imposto sobre Transmissão de Propriedade Imobiliária Intervivos e sua incorporação ao capital das sociedades (art. 19, IV).

Enquanto a letra b do inciso I do art. 20 da Constituição de 37 tratava da instituição do Imposto sobre o Consumo de Quaisquer Mercadorias, o § 1º do art. 15 da Constituição de 1934 institui a figura da isenção para algumas espécies de mercadorias, destinadas a satisfazer necessidades básicas do ser humano: mercadorias destinadas à habitação, à alimentação, ao vestuário e ao tratamento médico das pessoas com limitações financeiras.É a constitucionalização do princípio da essencialidade.

Ad cargumentandum tantum, em relação aos Estados, o princípio da essencialidade também se fez presente no § 5º do art. 19. Manteve-se as figuras da uniformidade do tributo e da extensão do mesmo tratamento às mercadorias, sem distinção de sua procedência ou destino, previstas no § 1º do art. 23 da Carta de 1937. Porém, na Constituição de 1946 foi retirado o vocábulo “espécie”, originalmente contido no artigo retro citado da Constituição de 1934.

Retirado o vocábulo, poderia o legislador estadual estabelecer as alíquotas do imposto de acordo com a maior ou menor essencialidade do produto, onerando aqueles menos imprescindíveis às necessidades básicas do homem, e impondo maior ônus tributário àquelas mercadorias consideradas como não essenciais.

Novamente, não se faz menção aos combustíveis e à propriedade de veículos automotores.

Tais foram, em suma, as inovações contidas na Constituição Federal de 1946. Para alguns autores, esta foi a melhor Constituição que o Brasil já teve. É o que assevera Celso Ribeiro Bastos, citado por Cunha (2001: 207-208):

A Constituição de 1946 se insere entre as melhores, senão a melhor, de todas que tivemos. Tecnicamente é muito correta e do ponto de vista ideológico traçava nitidamente uma linha de pensamento libertária no campo político sem descurar da abertura para o campo social que foi recuperada da Constituição de 1934.

  • Reconstrução do Brasil: a Constituição de 1967

Finalmente, com o advento da Constituição Federal promulgada pelos militares, a matéria tributária recebe por parte do legislador constituinte um tratamento diferenciado.

Nesta Constituição, o Sistema Tributário foi contemplado no Capítulo V do Título I — Da Organização Nacional, sendo ali consignada toda a matéria tributária (os tributos e as suas espécies; as competências; os princípios constitucionais tributários etc.), que, nas Constituições anteriores, encontrava-se em regra dispersa entre os artigos concernentes à organização do Estado brasileiro e nas Disposições Finais.

De fato, o art. 18 da Constituição Federal em análise traz à colação a composição e a forma de regência do Sistema Tributário Nacional:

TÍTULO I

DA ORGANIZAÇÃO NACIONAL

(…)

CAPÍTULO V

DO SISTEMA TRIBUTÁRIO

Art. 18 — O sistema tributário nacional compõe-se de impostos, taxas e contribuições de melhoria e é regido pelo disposto neste Capítulo, em leis complementares, em resoluções do Senado e, nos limites das respectivas competências, em leis federais, estaduais e municipais.

Importante destacar que, com a nova Carta Constitucional, importantes modificações na seara tributária foram efetivadas. E uma delas foi justamente o surgimento do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias (art. 24, II), que nesta Constituição ainda não englobava os impostos sobre serviços de transporte e comunicações, sobre o consumo de energia elétrica e sobre a extração, circulação, distribuição ou consumo de minerais, além dos Impostos incidentes sobre a importação, a produção e a circulação de lubrificantes e de combustíveis líquidos e gasosos, todos estes mantidos como de competência da União (conforme art. 22, IX e X), e posteriormente reunidos sob o pálio do ICMS, na Constituição de 1988, como se verá oportunamente.

A Constituição de 1967 extingue, no sistema tributário pátrio, o até então conhecido Imposto sobre o Consumo, então de competência federal.

Veja-se que a União atraiu para si toda a tributação, centralizando-a, em detrimento dos demais entes federativos.

O Decreto-lei nº 208, de 27.02.1967 regulamentou a cobrança dos impostos sobre combustíveis, enquanto vigente a Constituição de 1967.

O art.2º da Emenda Constitucional nº 27/1985 deu nova redação ao art. 23 da Carta Magna vigente, instituindo o fato econômico “propriedade de veículo automotor” em seu inciso III, este passível de tributação pelos Estados, como substituto à vetusta Taxa Rodoviária Única (TRU), instituída pelo Decreto-lei nº 999, de 21.10.1969. Nascia o famigerado IPVA.

Mas findou-se o regime militar. Com a eleição de um novo presidente (desta vez, civil), foi necessário criar um novo país, com a promulgação de uma nova Carta Magna.

  • O nascimento de um novo país: A Constituição de 1988

Depois de 21 (vinte e um) anos de vigência da Constituição de 1967, é promulgada em 05 de outubro de 1988 a famigerada “Constituição Cidadã”.

Seguindo o modelo da Constituição anterior, também esta adotou um título específico para tratar da tributação e do orçamento.

Importantes modificações foram efetuadas, portanto, no tocante à tributação, havendo remanejamento de fatos econômicos tributáveis para os entes federativos e criando a tributação sobre a propriedade de veículos automotores (até então inexistente). Veja-se:

TÍTULO VI

DA TRIBUTAÇÃO E DO ORÇAMENTO

CAPÍTULO I

DO SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL

(…)

SEÇÃO IV

DOS IMPOSTOS DOS ESTADOS E DO DISTRITO FEDERAL

Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:

I – transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos;

II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;

III – propriedade de veículos automotores.

Ainda se estabeleceu que:

§ 6º O imposto previsto no inciso III:

I – terá alíquotas mínimas fixadas pelo Senado Federal;

II – poderá ter alíquotas diferenciadas em função do tipo e utilização.

Destaca-se que não há uma lei complementar definindo os aspectos material (fato gerador), quantitativo (base de cálculo) e pessoal (contribuinte), por expressa determinação do art. 146, III, da Constituição atual. Logo, o disposto no § 6º, em função da competência tributária plena conferida aos Estados e ao Distrito Federal (art. 24, I, §§ 1º a 4º), passou a ser definido livremente pelos mesmos.

O IPVA é um tributo anual, sendo pago normalmente em 3 (três) parcelas. Melhor faria o legislador ordinário se facultasse ao sujeito passivo o pagamento durante todo o exercício a que se refere o tributo, que é lançado de ofício pela administração tributária. Por certo diminuiria a inadimplência desse tributo.

O contribuinte direto do tributo é aquele que se constitui em proprietário na data da ocorrência do fato (ou seja, em 1º de janeiro de cada ano).

Por veículo automotor se poderia pensar em todo e qualquer veículo movido a propulsão. Porém, como tal tributo tem o seu nascedouro na extinta Taxa Rodoviária Única, em julgados passados os ministros do Supremo Tribunal Federal se manifestaram pela procedência da tributação tão somente sobre veículos automotores terrestres.

A base de tributação é o valor venal do bem, avaliado em conformidade com a Tabela Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas), que expressa preços médios de veículos no mercado nacional.

Mas por que se elencar como fato econômico tributável a propriedade de um bem consumível, sendo este já excessivamente onerado por tributos que incidem sobre o consumo? Isso não caracteriza uma bitributação e/ou confisco tributário – como asseveram alguns estudiosos –, e também não permitiria que se estendesse a instituição de impostos sobre outros fatos presumíveis de riqueza econômica?

Ora, de antemão, já se afirma: uma coisa é tributar a propriedade; outra, o consumo.

É o que se verá a seguir.

  • Por que pagar tributo sobre propriedade de veículo automotor?

O cidadão comum indaga: – Por que pagar tributo? Quando é que efetivamente surgiu o tributo, como obrigação que um indivíduo, isoladamente ou em grupo, exigia das demais pessoas, seus administrados, constituindo-se consequentemente na mais expressiva fonte de receita para custeio das atividades estatais? Assumiu o tributo, desde seus primórdios, feição eminentemente pecuniária?

Determinar a origem da criação dos tributos é tarefa difícil, vez que remonta aos primórdios da evolução do homem em sociedade. Há antigas reminiscências a tributos nas civilizações egípcia e romana (portorium, sobre a importação; vicesimahereditarium, sobre as heranças; centésima rerumvenalia, sobre as vendas etc.), bem como junto a outros povos do Oriente. Também se faz menção aos impostos nos textos evangélicos, sendo clássicas as palavras do Cristo, quando instado a se manifestar sobre a licitude de se pagar tributo a Roma: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”.

Pode-se ir um pouco mais além, identificando-se como tributo as primeiras manifestações dos nossos antepassados, que expressavam seu respeito ou agradecimento através do oferecimento de presentes aos líderes de suas comunidades. Posteriormente, a expansão das sociedades antigas, debatendo-se em ferozes carnificinas pelo controle das melhores regiões de caça, terras cultiváveis e fontes de água, gerou a obrigatoriedade de o povo vencido entregar parte de suas riquezas aos povos vencedores.

De fato, Aliomar Baleeiro (2001: 125), ao analisar a Teoria dos Ingressos Públicos, enfatiza bem tal aspecto:

Para auferir o dinheiro necessário à despesa pública, os governos, pelo tempo afora, socorrem-se de uns poucos meios universais: a) realizam extorsões sobre outros povos ou deles recebem doações voluntárias; b) recolhem as rendas produzidas pelos bens e empresas do Estado; c) exigem coativamente tributos ou penalidades; d) tomam ou forçam empréstimos; e) fabricam dinheiro metálico ou de papel.

E continua (2001: 125):

Já se pretendeu firmar um retrospecto da evolução das receitas com fases características, presumidamente sucessivas, muito embora possam coexistir e apresentar tipos recessivos. Essas fases seriam redutíveis a cinco padrões: a) parasitária (extorsão exercida contra povos vencidos); b) dominial (exploração do patrimônio público); c) regaliana (cobrança de direitos realengos, como pedágio etc.); d) tributária; e) social (tributação extrafiscal sócio-política).

A humanidade evoluiu e, com ela, a noção de Estado. Hoje já não se cogita de se ter ingressos com base nas extorsões diretas sobre outros povos (modalidade parasitária). O tributo se tornou um fenômeno legal dentro do estado democrático de direito.Por isso não é possível falar sobre tributação sem entender, adequadamente, o contexto em que o fenômeno se insere.

Nesse passo, todo o fundamento para o exercício do poder de tributar, na atual conformação do Estado brasileiro, encontra-se na Constituição Federal, que, como visto, além de definiras competências tributárias de cada ente federativo,ainda prescreve limites ao exercício desse poder, de observância obrigatória.

Se o Estado não pode explorar diretamente a atividade econômica (salvo quando necessária aos imperativos de segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, nos termos do art. 173 da Carta Magna), auferindo recursos para o financiamento dos serviços sociais (as conhecidas receitas públicas patrimoniais ou dominiais), deve buscar suas receitas em outras fontes e, ao mesmo tempo, racionalizar as suas despesas, para que não se torne um peso para a sociedade.

A preocupação com tal relação (ingressos versus gastos ilimitados do Estado), apesar de hoje ser menosprezada e achincalhada pelos dirigentes da nação, não é, entretanto, recente. Curiosamente, Machiavelli, citado por SADEK (1996: 94) aduzia, tempos passados, que, para um “príncipe” ser louvado e não vituperado, ele deveria

[…] gastar pouco para não ser obrigado a roubar seus súditos; para poder defender-se; para não se empobrecer, tornando-se desprezível; para não ser forçado a tornar-se rapace; e pouco cuidado lhe dê a pecha de miserável; pois esse é um dos defeitos que lhe dão a possibilidade de bem reinar. […].

Qualquer semelhança entre o excerto acima reproduzido e a situação brasileira não seria uma mera coincidência, guardadas as devidas proporções entre a situação da Itália, à época de Machiavelli (fragmentada em diversos estados independentes), e a República Federativa do Brasil. Mais uma vez, a história se repete. Mudam-se apenas os atores, como asseveravaMachiavelli(SADEK, 1996: 19):

[…] aquele que estudar cuidadosamente o passado pode prever os acontecimentos que se produzirão em cada Estado e utilizar os mesmos meios que os empregados pelos antigos. Ou então, se não há mais os remédios que já foram empregados, imaginar outros novos, segundo a semelhança dos acontecimentos. (Discursos, livro I, cap. XXXIX)

Ante considerações desse jaez, não é sem outra razão que o tributo, como um dos objetos de estudo do Direito Tributário, termina por se tornar em um dos temas mais apaixonantes do Direito Público atual, particularmente porque envolve um histórico curioso a respeito das invectivas do Estado no patrimônio do particular, para dele extrair os recursos necessários à manutenção das suas atividades.

Feitas estas digressões, volta-se à indagação inicial: por que pagar o IPVA? Pode (ou deve) tal tributo ser extinto, como pretende o cidadão brasileiro?

Viu-se, anteriormente, que uma das fontes de recursos públicos (a Taxa Rodoviária Única), instituída pelo Decreto-lei nº 999, de 21.10.1969, foi suprimida. Disso se depreende que um tributo pode ser extinto, bastando para tal uma alteração legislativa.

É muito interessante reproduzir os “considerandos” para a criação da taxa, constantes do preâmbulo do Decreto-lei nº 999/1969:

CONSIDERANDO a existência de múltiplos tributos, cobrados dos proprietários de veículos automotores para o registro anual e licenciamento, em todo o país;

CONSIDERANDO que a Constituição permite aos Estados e Municípios, à União, cobrarem taxas remuneratícias do seu poder de política ou pela utilização de serviços públicos utilizados ou postos à disposição do contribuinte, desde que sejam específicos e divisíveis;

CONSIDERANDO que a circulação assegurada aos veículos em todo o território nacional, qualquer que seja o local de seu registro, conduz a que os contribuintes utilizem serviços de outras unidades da federação, sem que tenham remuneração êsses serviços, o que desvirtua, em tal hipótese, o preceito constitucional de que o serviço seja perfeitamente específico e divisível;

CONSIDERANDO a desigualdade de valôres e critérios de cobrança observada nas diversas unidades da Federação, que leva a tratamento discriminatório e enseja evasões de receita;

CONSIDERANDO que o sistema tributário nacional deve conter tributação uniforme para proteção do contribuinte e salvaguarda da receita tributária das diversas unidades federadas;

CONSIDERANDO, ainda, a necessidade de simplificar e aperfeiçoar os processos de arrecadação no interesse do Poder Público e do contribuinte,

Vê-se que a Taxa Rodoviária Única veio como uma resposta a conflitos de tributação entre entes federativos distintos, e, o mais importante, para equacionar o problema da “existência de múltiplos tributos, cobrados dos proprietários de veículos automotores para o registro anual e licenciamento, em todo o país”.

Ora, sabe-se que a taxa é um tributo vinculado (art. 145, II, CF/1988). Exige, pela sua própria natureza, uma contraprestação direta ao contribuinte, para sua validade, além de não poder adotar, em seu aspecto quantitativo, base de cálculo própria dos impostos (art. 145, III, c/c § 2º, CF/1988; art. 19, II, c/c § 2º, CF/1967). E no caso da taxa criada pelo citado Decreto, a base de cálculo era o valor venal do bem (art. 2º, com alíquotas máximas variáveis entre 2% [dois por cento] para motocicletas e 7% [sete por cento] para veículos de passeio). Sob o pálio da Constituição atual, esta taxa seria inconstitucional, por – como enfatizado – adotar base de cálculo própria de impostos.

Para substitui-la, foi criada a possibilidade de se instituir um tributo, na modalidade “imposto”, sobre a propriedade de veículos automotores (através da Emenda Constitucional 27/1985, que introduziu o inciso III ao art. 23 da Constituição de 1967), cuja competência para criação foi reservada aos estados e mantida na Carta Magna de 1988, como visto alhures.

Essa multiplicidade de tributos que recaem sobre um determinado bem, com a devida vênia, ainda continua em nosso ordenamento jurídico. Sobre o bem de consumo “veículo automotor” recai – conforme o caso – o Imposto de Importação, o Imposto sobre Produtos Industrializados, o Imposto sobre Circulação de Mercadorias, os tributos sobre o lucro e as contribuições sociais. Todo esse custo tributário é repassado ao consumidor final, pelo mecanismo dos preços, tornando-os mais onerosos.

Ora, como já afirmado anteriormente, o tributo é necessário ao custeio das despesas públicas. Para se cobrar um tributo, em nosso ordenamento jurídico, se exige que tal possibilidade esteja prevista na Constituição: definem-se as espécies, osfatos econômicos tributáveis, as competências, atribuindo a cada ente federativo o poder de legislar sobre Direito Tributário e os limites ao exercício desse poder (legalidade, isonomia, capacidade contributiva, anterioridade, irretroatividade etc.).

Tributo só pode ser criado por lei, que atenda aos requisitos de validade formal (quorum para aprovação na casa legislativa, em função da espécie de lei, e posterior sanção) e material (reserva de matéria para lei complementar), a teor do previsto no art. 3º do CTN. Isso porque a lei é um dos fundamentos do estado de direito: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei” (art. 5º, II, CF/1988).

No caso da tributação sobre a propriedade móvel motorizada, com a devida vênia, não se pode falar em inconstitucionalidade da tributação. Afinal, uma coisa é tributar a propriedade: tem-se aqui um fato econômico tributável. No exercício do poder constituinte, o legislador optou por incluir a propriedade de veículo automotor como fato econômico passível de tributação. No exercício desse poder, optou pela possibilidade de se tributar a circulação de mercadorias, ou seja, um fato ocorrido após a industrialização e que integra a cadeia de produção e circulação de mercadorias. Outra, a produção industrial. Outra, éa criação de taxas para custear o serviço de licenciamento de veículos.

São fatos econômicos e serviços (no caso da taxa de licenciamento) distintos.

Ad argumentandum, poder-se-ia falar em inconstitucionalidade por bitributação,caso dois ou mais entes federativos instituíssem um ou mais tributos sobre o mesmo fato econômico. Verbi gratia,se a União e os Estados pudessem tributar a propriedade de veículos automotores.

Ressalta-se, mais uma vez: cada espécie tributária que incide sobre o veículo automotor possui um fato gerador distinto. Por isso não há como falar em inconstitucionalidade do IPVA, por suposta bitributação, como entende o vulgo.

Mas, diante da cobrança de pedágio, poderia (ou deveria) ser extinto o IPVA?

É, sem dúvida, o sonho de todo proprietário. Veja-se.

Sob o ponto de vista da atividade econômica, um veículo automotor decorre da reunião de partes e peças, que configuram, assim reunidas, um produto distinto do original. É a conhecida operação de montagem, prevista no art. 3º da Lei nº 4.502, de 30.11.1964 (que instituiu o IPI). Todas as peças e partes que compõem o veículo já foram tributadas anteriormente, gerando crédito de imposto para o seu adquirente, tanto em relação ao IPI quanto ao ICMS, pagos na aquisição daquelas. Uma vez colocado na cadeia de circulação, quando da mudança de titularidade (venda do fabricante para o consumidor) haverá a incidência do ICMS, além da incidência de PIS/COFINS sobre o faturamento e Imposto de Renda e Contribuição Social sobre o lucro (que estão contemplados na formação do preço de venda).

Em suma, há uma longa cadeia industrial e comercial que permeia a produção e a comercialização de veículos automotores, sendo geradora de empregos e, como visto, de tributos federais e estaduais.

Eventual desoneração dos veículos, com a supressão do IPVA, minaria os estados desta fonte de receita, afetando consequentemente os orçamentos dos municípios, já que estes últimos participam da arrecadação estadual da citada exação em função do número de veículos licenciados em seu território (não se esquecendo que participam, lado outro, da arrecadação do ICMS, do IPI e do IR).

Por outro lado, em nossa modesta opinião, a extinção do IPVA teria o condão de fomentar a atividade econômica, vez que outros produtos poderiam ser adquiridos com aquele dinheiro, aumentando consequentemente a industrialização e o consumo, sendo diretamente beneficiados os estados e os municípios com o incremento da produção industrial e comercial.

O que haveria de perda de arrecadação, seria compensado com o incremento da comercialização de outros bens de consumo, com consequente aumento da arrecadação do IPI e ICMS (isso sem falar no IR e na CSLL, em caso de existência de lucro tributável, nos termos da legislação aplicável a tais tributos).

Assim, para a supressão desse tributo, seria necessária emenda ao texto constitucional, o que pode se tornar algo extremamente difícil de obter, face à possível (e previsível) resistência dos estados e municípios, quanto à perda de arrecadação sem compensação – a princípio – com o incremento de outras fontes de receitas públicas, como já mencionado.

Ora, conhecendo-se de antemão o vasto volume de recursos que são amealhados pelas concessionárias que administram as rodovias, poderia o ente concedente aumentar a sua participação na receita oriunda dos pedágios e/ou na outorga das concessões das rodovias estaduais, compensando-se a perda de arrecadação.

Mas, no final, todos esses remanejamentos sairiam do bolso do contribuinte, vez que as concessionárias repassariam tais custos no preço do pedágio.

Chega-se ao ponto crucial do dilema: não há como fazer qualquer tipo de reforma, no plano da tributação, se não houver a contrapartida do Estado, mediante criterioso ajuste das finanças públicas, com racionalização das despesas.

Ainda é um vício predominante na gestão da res publicaa falta de melhor trato, fixando-se as despesas não em função da arrecadação, mas sim, de forma eficiente e racional. Com isso, poder-se-ia atingir mais facilmente os reais objetivos do Estado brasileiro, consubstanciados no art. 3º da Carta Magna.

  1. Conclusão

Segundo Baleeiro (2001: 274),

O imposto, como fenômeno sociológico complexo, está congenitamente consociado ao fenômeno político. Vivendo em sociedade, os homens têm necessidades que só pelo grupo podem ser satisfeitas. O primeiro cacique, que, pela força, audácia e astúcia, comandou a tribo no ataque ou na defesa, foi escolhido juiz e possivelmente se arvorou sacerdote. Quando logrou essa ascendência, fez-se alimentar pelo esforço dos demais, que se resignaram ao sacrifício, em parte pelo medo, em parte porque tiveram a obscura intuição de que o chefe era instrumento útil e necessário ao grupo. Até hoje se repete que o pior dos governos é melhor que a anarquia.

Sim, o tributo tem natureza econômica, política e social.

Pelo exposto, vê-se que o problema que aflige a sociedade que se encontra sob o guante do Estado tributário é, precisamente, quando a carga de tributos atinge um patamar que solapa o patrimônio dos contribuintes, que trabalham para sustentar, em muitos casos, a ineficiente máquina estatal e sem que haja qualquer eficiente contraprestação do Estado em serviços, tais como saúde, educação, transporte e segurança, dentre outros, guindados à categoria de direitos sociais constitucionalmente assegurados, constantes do caput do art. 6° da Constituição Federal (CF) de 1988.

O fato econômico tributável “propriedade de veículo automotor”, a ser tributado mediante instituição de imposto pelos estados e pelo Distrito Federal, veio como sucedâneo à extinta Taxa Rodoviária Única, criada pelo Decreto-lei nº 999, de 21.10.1969. Resultou da aprovação da Emenda Constitucional nº 27/1985, que acrescentou o inciso III ao art. 23 da Constituição de 1967, permanecendo na Constituição de 1988.

Uma vez incorporado o fato econômico “propriedade” no texto constitucional, não há que se falar em inconstitucionalidade do mesmo, alegando bitributação, vez que se trata de um fato gerador distinto da industrialização ou da circulação econômica de mercadorias.

O cerne da discussão deve se vincular, com a devida vênia, aos aspectos econômicos da propriedade de veículo automotor. O IPVA onera as pessoas físicas e jurídicas, que, após arcar com a alta carga de tributos existente no preço desses bens consumíveis e fungíveis, ainda permanecem com o encargo de pagar um tributo por serem proprietários de um veículo, que exige gastos outros com a aquisição de combustíveis e peças de reposição, igualmente tributados.

Para a supressão desse tributo, é necessária emenda ao texto constitucional, o que pode se tornar algo extremamente difícil de obter, face à possível (e previsível) resistência dos estados e municípios, quanto à perda de arrecadação sem compensação – a princípio – com o incremento de outras fontes de receitas públicas, o que poderia ser obtido junto a outras fontes ou mediante racionalização das despesas públicas, com expressiva diminuição do tamanho do Estado.

A manutenção desse Estado nababesco jamais permitirá que se faça qualquer reforma tributária, suficiente a diminuir os preços dos bens.

Para se mudar a ordem instaurada, ou se faz uma revolução ou se altera a produção legislativa pelo voto, ainda que os homens possam repetir os mesmos erros, perpetrados pelos seus antecessores. Mas é deveras importante (e necessário) que haja o amadurecimento da sociedade, com maior participação nas decisões governamentais, para se exigir efetivo retorno em relação àquilo que se paga, além de administração proba dos recursos públicos.

Tal participação, como nas discussões envolvendo a licitude de se tributar a propriedade móvel, já se vislumbra nos dias atuais, graças ao surgimento da internet e das redes sociais, que tem o importante condão de divulgar o conhecimento quase que instantaneamente, facilitando o debate e influenciando decisivamente na vida política do país. Talvez Aliomar Baleeiro já tivesse vislumbrado isso nos idos de 1955, quando da publicação da 1ª edição da obra Uma Introdução à Ciência das Finanças, de quem tomamos por empréstimo as seguintes palavras (2001: 274): “Quanto mais se elevam as massas, na evolução democrática, tanto mais participa do poder, indiretamente, o maior número.”

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[1] Apenas a título de brevíssimas explicações, o Dízimo a Deus consistia na destinação de 10% (dez por cento) da produção brasileira para a manutenção das atividades da Ordem de Cristo, instituída em Portugal pelo Papa João XXII, da qual o monarca português encarregara-se da arrecadação.

[2] O art. 174 determinava que, após o decurso do prazo de quatro anos, qualquer matéria constitucional que necessitasse de reforma deveria ser proposta originariamente na Câmara dos Deputados, por escrito, por um terço de seus membros.

[3] O motor à explosão foi desenvolvido e patenteado pelo alemão Nikolaus August Otto, caixeiro viajamte de profissão e posteriormente industrial. Juntamente com o engenheiro EugenLangen, fundou em 1864 a primeira fábrica de motores à explosão do mundo (a N.A. Otto & Cia.). “Otto, que não descansava na sua porfiria para domesticar a explosão no seu motor de 4 tempos, um dia imaginou injetar primeiro ar no cilindro depois o combustível. Na hora da compressão a camada rica ficava junto da ignição e o ar, mais próximo do pistão, funcionava como acolchoamento, para suavizar a pancada. A realidade mostrou que a teoria estava certa – e Otto conseguira domesticar a explosão.A partir de 1876 começa, em ritmo industrial, a construção do novo motor de Otto, pai de todos os motores à explosão modernos. Sua patente de número DRP 532, torna-se a patente-base do motor moderno e a patente mais combatida do mundo!” Por volta de 1890, Karl Benz e Gottlieb Daimler, na Alemanha, e Albert de Dion e Armand Peugeot, na França, fabricavam automóveis para venda ao público. Esses primeiros carros produzidos em número limitado, iniciaram a idade do automóvel. em 1882, o engenheiro alemão DAIMLER começou a construir os primeiros motores práticos de gasolina. Em 1885, montou um desses motores numa espécie de bicicleta de madeira e, no ano seguinte, uma carruagem de 4 rodas. Foi o primeiro automóvel que realizou, com êxito, viagens completas. Desde então, surgiram novos modelos que passaram a ter rodas de borracha, faróis e pára-choques.

(Disponível em http://www.carroantigo.com/portugues/conteudo/curio_motor_explosao.htm)

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