VÍDEO AUDITORIA, PROVISÃO E RESERVA DE LUCROS PARA CONTINGÊNCIAS: O QUE TEM A VER O STF COM ISSO (PARTE 1)?

  • Por: Amaury Mainenti
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Nós começamos a atuar no segmento de auditoria quando ainda cursávamos o curso de Ciências Contábeis, nos idos de 1986. Naquela época, não se tinha uma confluência das normas contábeis internas às internacionais, cuja exigência veio muito mais pelos escândalos contábeis ocorridos nos Estados Unidos (caso Enron), que terminou por fulminar a existência quase secular de uma das maiores empresas de auditoria do mundo até então, a Arthur Andersen[1].

Precisar quando efetivamente se iniciou a atividade de auditor não é uma tarefa fácil. Presume-se que seu advento é consequência (ou concomitante) à Revolução Industrial, que catapultou os negócios a patamares até então nunca vistos, promovendo consequentemente o surgimento do interesse de cidadãos endinheirados por aplicar suas reservas pecuniárias em negócios promissores. Nada diferente do que ocorre nos dias hodiernos, com o surgimento de negócios no âmbito virtual e que tem atraído o interesse de investidores “com os bolsos forrados”, fazendo com que meninos-homens (ou homens-meninos) dotados de inteligência diferenciada e com uma ideia lucrativa se tornem milionários, em mais tenra idade (assim considerada aquela que, em tese, o torna apto para o exercício dos atos de comércio).

Foi justamente o interesse de investidores por negócios promissores que levou as partes a escolherem determinados profissionais, expertos em práticas administrativas, financeiras e contábeis, cujo mister consistia justamente em examinar os livros de registros contábeis das empresas interessadas em receber recursos, oferecendo ao investidor certa segurança quanto às práticas adotadas pela investida, assegurando-se de que os demonstrativos contábeis espelhassem a sua real posição patrimonial, econômica e financeira.

Eis ai, em apertadíssima síntese, o embrião da atividade de auditoria.

Porém, as pessoas jurídicas cresceram. Tornaram-se mais complexas. Expandiram-se. Empresas nascidas em fundo de quintal, como a Harley-Davidson, em pouco mais de duas décadas, desde a sua fundação, se tornou a maior montadora de motocicletas do mundo, tornando-se um ícone da cultura pop. Os conflitos de interesses entre sócios passaram a exigir maior cuidado na elaboração dos atos constitutivos das pessoas jurídicas. Lado outro, o Estado passou a intervir, em maior ou menor grau, na atividade econômica. As relações entre ele e seus administrados se tornaram mais intensas, com o Estado participando dos resultados dos negócios mediante imposições de ordem tributária. A tributação se tornou igualmente complexa, com a criação de tributos cuja simplicidade de cálculo e arrecadação foi ficando na poeira das estradas. Adicione-se a esse caldeirão uma pitada de politização do Poder Judiciário, graças à forma adotada para formação das cortes superiores nos sistemas jurídicos dos países, cuja independência foi sendo dilapidada, paulatinamente, face à avidez estatal por mais e mais receitas derivadas.

Por corolário, a Ciência Contábil se foi amoldando às mudanças, não se afastando da “aplicação do método das partidas dobradas”, criado pelo Frei Luca Bartolomeo de Pacioli[2] (Sansepulcro, Itália, 1445. Idem, 1517). Se há um “silogismo” – se assim podemos considerá-lo – que deu certo neste planeta, este se materializa, efetivamente, nesse método. Afinal, mais de quinhentos anos se passaram, desde a sua concepção, e nenhuma Inteligência terrena conseguiu derrogar esta premissa: a cada débito corresponde um crédito de igual valor.

Se, por exemplo, a compra de um mero equipamento significava apenas a aplicação de recursos nesse gasto, sendo tratado simplesmente como despesa, a partir do momento em que se identificou que aquele bem poderia contribuir para a formação de mais de um resultado, estabeleceram-se critérios para que tais despesas não fossem imediata e integralmente levadas às respectivas contas de resultado, como dedução da receita liquida de vendas (no caso, como custo de fabricação), ou como dedução do lucro bruto operacional, a título de despesas operacionais. E como? Através do rateio do seu valor pela estimativa de vida útil do bem, apropriando-se o valor proporcionalmente consumido no período: a famigerada depreciação. 

Da mesma forma, cuidou a Ciência Contábil por encontrar meios de registrar situações que poderiam acarretar, em maior ou menor prazo, a continuidade das operações da pessoa jurídica, exigindo-se, conforme o caso, a constituição de provisões e reservas de lucros. Quem não se recorda da provisão para devedores duvidosos (uma dedução da conta clientes ou duplicatas a receber), que busca ajustar esses direitos (ativos) à sua real expectativa de recebimento, as provisões para pagamento de férias e salários e as provisões para encargos trabalhistas e tributários? E as reservas para contingências, criadas para facear eventos que podem impactar decisivamente os resultados da pessoa jurídica?

Veja-se, a título de exemplo: como o investidor sentir-se-á seguro para adquirir debêntures (conversíveis ou não em ações) e/ou ações ordinárias ou preferenciais de uma sociedade anônima que suportou prejuízos de expressivo valor, como nos casos em que se tem a sua responsabilização por danos ambientais?

A partir do momento, então, em que as empresas passaram a negociar seus papeis em bolsas de valores, a atividade de auditor e sua responsabilidade por danos causados a investidores se tornou de extrema importância, atribuindo-se legalmente a esses profissionais a responsabilidade de evidenciar, em seus pareceres, qualquer situação que possa influenciar os resultados da pessoa jurídica e que possam se constituir em riscos à sua continuidade, ainda que não registrados, adequadamente, nos livros contábeis da pessoa jurídica auditada.

No tocante aos riscos jurídicos, como se pode mensurar isso? É importante que o profissional contábil detenha informações seguras quanto ao possível êxito ou sucumbência da empresa auditada nos processos judiciais em que figura como parte autora ou ré, que devem ser repassadas pelos advogados responsáveis pela condução dos mesmos.

Ergo, adotar uma posição conservadora, com constituição e revisão periódica das provisões e reservas, é medida que se impõe.

O Conservadorismo é um princípio contábil, de observância obrigatória pelos profissionais contábeis. Esse princípio, em síntese, orienta o contador, ante alternativas igualmente válidas para a quantificação das mutações patrimoniais que alterem o patrimônio líquido, para que ele adote o menor valor para os componentes do ativo e o de maior para o passivo.

A prudência assim orienta. Não sem razão o Princípio do Conservadorismo é também conhecido por Princípio da Prudência.

Logo, ao alienar um bem imóvel, há a possibilidade de que o vendedor venha a auferir ganho nessa operação. Não pode o contador lançar o ganho de capital a registro, exceto quando a venda se efetivar, com a transferência do bem negociado para o patrimônio do adquirente.

Da mesma forma, o ajuizamento de uma ação judicial objetivando a nulidade de uma exigência tributária, ou cláusulas de um contrato de financiamento, devem estes ser registrados pelo seu valor integral, com seus acréscimos, até que se obtenha uma decisão final, da qual não se possa mais recorrer, que no direito processual civil é conhecido pela expressão “coisa julgada”.

No âmbito tributário, o sujeito passivo tem à sua disposição um rol de específico de ações, sendo as mais usuais os embargos à execução, para se opor à execução fiscal (art. 16, Lei nº 6.830, de 22.09.1980); a ação anulatória, quando se tem por objetivo anular uma exigência fiscal (art. 38, CTN); a ação declaratória, utilizada quando se necessita de uma declaração judicial quanto à subsunção do fato praticado pelo sujeito passivo à hipótese de incidência (art. 38, CTN); a ação consignatória, cujo escopo está delineado no art. 164 do Código Tributário Nacional (CTN); da repetição de indébito, em caso de pagamento indevido ou maior do que no devido (art. 165, CTN).

O mero ajuizamento de uma ação tributária não é causa de suspensão de exigibilidade do crédito tributário, é bom que se diga. As causas que suspendem a exigibilidade deste estão elencadas nos incisos do art. 151 do CTN. Dentre elas, se destaca o depósito do montante integral do crédito tributário (art. 151, II, CTN). O depósito é condição para admissão dos embargos à execução, sem o que o processo executivo continua seu curso, conforme posicionamento do STF:

“Conforme consignado na decisão embargada, não se verifica similitude entre o decidido no ato reclamado – que, com base no art. 16, § 1º, da Lei 6.830/1980, assentou a inadmissibilidade dos embargos do executado antes de garantida a execução – e o assentado por esta Corte na Súmula Vinculante 28 (…).

Nesses termos, mostra-se inviável a invocação da Súmula Vinculante 28 para afastar a exigência de garantia do juízo nos embargos à execução fiscal. Cabe ressaltar que o enunciado da referida súmula se refere às ações judiciais que têm por objeto qualquer etapa do fluxo de constituição e de positivação do crédito tributário antecedente ao ajuizamento da ação de execução fiscal, momento em que ocorre a judicialização do inadimplemento do sujeito passivo. (…)

A rigor, a aplicação da referida súmula às execuções fiscais implicaria a declaração de não recepção do art. 16, § 1º da Lei 6.830/1980, sem a observância do devido processo legal (Rcl 6.735 AgR, rel. Min. Ellen Gracie, Pleno, DJ e de 10.09.2010). Além disso, não há nenhuma indicação de circunstância excepcional a apontar ser a garantia do juízo exigida pela Lei de Execuções Fiscais barreira intransponível ao direito de acesso à jurisdição. [Rcl 32.139 ED, rel. min. Gilmar Mendes, dec. monocrática, j. 17-12-2018, DJE 272 de 19-12-2018.]”

Claro, é possível até mesmo requerer que os embargos sejam convertidos em ação anulatória, dada a aplicação do princípio da fungibilidade. Mas o que ressalta de importante é que, sem o depósito integral, não se suspende a exigibilidade do crédito tributário.

Apenas para facilitar o entendimento, a ideia de “crédito tributário” é mais ampla do que a de tributo. Enquanto este tem seu conceito declinado no art. 3º do CTN, significando toda prestação pecuniária compulsória, instituída em lei, diversa da aplicação de penalidade e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada, o crédito tributário “decorre da obrigação principal e tem a mesma natureza desta” (art. 139, CTN). Para a sua determinação, exige-se, em regra, da autoridade tributária a prática de atos concatenados, que, agrupados, se denomina “lançamento tributário” (art. 142, CTN). Logo, o crédito tributário pode contemplar, por exemplo, o valor de imposto acrescido das penalidades pelo descumprimento da legislação, acrescido de juros e atualização monetária; também pode ser decorrente da aplicação de penalidade por descumprimento de dever instrumental, tal como utilizar-se o contribuinte de documento errôneo para acobertar operações de saída e respectivo transporte de mercadorias.

Já tivemos casos em que foi ajuizada uma ação anulatória sem o devido depósito integral do crédito tributário e obtivemos êxito antes do ajuizamento, por parte do ente federativo competente, da ação de execução fiscal. Também já ocorreu da ação anulatória ter sido proposta e, ante o posterior ajuizamento da execução fiscal, obtermos a reunião dos processos. E há casos de ajuizamento de ação, com pedidos declaratório e anulatório, em que o próprio contratante optou por assumir o risco de futuro procedimento fiscalizatório, o que efetivamente ocorreu. A assunção desse tipo de risco é algo que o patrono da parte jamais deve propor, vez que, via de regra, para cada real que o sujeito passivo deixou de recolher oportunamente, será esse acrescido dos valores referentes a atualização monetária, multa e juros moratórios, além das demais penalidade previstas na legislação do tributo, tais como as multas isoladas e de revalidação. Logo, pode-se bem deduzir o que isso acarreta.

Não é sem outra razão que, nos trabalhos de auditoria, em função do que o auditor constatar em suas análises dos registros contábeis da pessoa jurídica, deparar-se com situações em que ele deva fazer alguma ressalva ou mesmo opinar, quando à regularidade das demonstrações contábeis.

No caso dos tributos em discussão judicial, tanto os valores dos depósitos judiciais quanto o valor a ser provisionado em relação ao objeto da ação, devem estar adequadamente contabilizados, em contas contábeis que as evidenciem com clareza.

Por exemplo: uma empresa recebe a notificação de lançamento relativo ao IPTU, no valor de $10.000,00 e um auto de infração e imposição de multa relativa ao ICMS ($15.000.000,00). Fazendo os registros contábeis:

 

D/C Descrição da conta Valor debitado Valor creditado
D Depósitos judiciais – ICMS

15.000.000,00

D Depósitos judiciais – IPTU

10.000,00

C Bancos conta movimento

Conta Xxxx- Banco do Brasil S/A

 

15.010.000,00

 

D/C Descrição da conta Valor debitado Valor creditado
D Resultado do exercício – Despesas com provisão para contingências tributárias

Tributos – ICMS

Tributos – IPTU

 

 

15.000.000,00

10.000,00

C Provisão para contingências tributárias

Tributos – ICMS

Tributos – IPTU

 

15.000.000,00

10.000,00

 

Alguns pontos merecem observações:

  1. A denominação das contas, acima, é exemplificativa, competindo a cada pessoa jurídica adequar o plano de contas de acordo com suas necessidades;
  2. Para as empresas que apuram o Imposto de Renda e a CSLL pelo Lucro Real, a provisão para pagamento de tributos em litígio não é dedutível, devendo ser adicionada ao resultado. Isso não se aplica às optantes pelo lucro presumido, haja vista a metodologia de cálculo, consistente na aplicação de um percentual legalmente definido sobre a base de cálculo;
  3. No caso dos impostos cujo fato gerador é doutrinariamente tratado como instantâneo, ocorrendo apenas uma vez no exercício, o valor do depósito será aquele previsto no documento representativo do lançamento, atualizado até a efetiva data de pagamento da correspondente guia de depósito judicial. O mesmo raciocínio se aplica para os lançamentos decorrentes de procedimentos fiscalizatórios (auto de infração e imposição de multa);
  4. Em relação aos impostos cujos fatos geradores sejam continuados, como no caso do ICMS e do IPI, os depósitos são feitos mensalmente;
  5. Posteriormente, caso o contribuinte saia vencido na demanda judicial, os depósitos judiciais serão convertidos em renda para a fazenda credora;
  6. Caso o contribuinte vença a peleja, os depósitos serão levantados por ele, e a receita de juros correspondente será contabilizada e oferecida à tributação, por representar aquisição de renda, nos termos do art. 43 do CTN.

E se o sujeito passivo vencer a demanda, com afastamento da imposição tributária e o STF decidir, posteriormente, pela constitucionalidade da exação?

Esse será o tema da segunda parte desse artigo.

(MAINENTI, Amaury R. Artigo elaborado em 16.02.2023 ).

 

NOTAS

[1] Deve-se destacar, para não faltar com a verdade, que, apesar de a Arthur Andersen ter sido condenada por fraude contábil, em 2002, ela foi posteriormente inocentada pela Suprema Corte dos Estados Unidos. A absolvição ocorreu em 2005, o que não foi suficiente para salvá-la da derrocada, na seara da auditoria.

[2]  O ano de 1494 é o único durante a vida de Pacioli que é absolutamente certo. Foi durante este ano que Pacioli, com 49 anos, publicou o seu famoso livro “Summa de Arithmetica, Geometria proportioni et propornaliti” (colecção de conhecimentos de Aritmética, Geometria, proporção e proporcionalidade), conhecido apenas por “Summa”. Este livro foi impresso em Itália em 1494, apenas doze anos após o aparecimento, em Veneza da primeira edição impressa dos “Elementos” de Euclides. Esta obra de Pacioli, contém parte original realizada por ele, além de uma compilação do conhecimento matemático da época; precisamente por isto constitui um documento muito importante pois permite estabelecer comparações com obras anteriores.

Foi também uma outra secção deste livro que tornou Pacioli famoso. A secção de que falamos era a “Particulario de computies et Scripturis”, um tratado sobre a contabilidade. O “scripturis” foi depois descrito por alguns como “um catalizador que lançou o passado no futuro”. Pacioli foi a primeira pessoa a descrever contabilidade de dupla entrada, também conhecido como método Veneziano. Este novo sistema era o último grito que revolucionou a economia e o comércio. O “Summa” tornou Pacioli uma celebridade e assegurou-lhe um lugar na história como “o pai da contabilidade”. Este livro foi o tratado de matemática mais lido em toda a Itália e foi um dos primeiros livros publicados na imprensa de Gutemberg. (Disponível em https://www.accpr.org.br/frei-luca-pacioli/ . Acesso em 16.02.2023).

 

 

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